Matéria do Jornal Pioneiro - 27/08/2011
(*Histórias de nossos imigrantes)
POR SILIANE VIEIRA - Jornal Pioneiro
Uma opinião compartilhada por outro gringon fundamental na formação do grupo, o ator Nadir Tonus, 63.
– Eles queriam mostrar que “non semo baúco” (não somos burros) , daí convocaram o resto da turma e começamos a fazer esquetes – lembra.
Pouco tempo depois, os cerca de 10 amigos – que se conheceram no seminário de Caxias e durante peladas de futebol – já faziam a primeira apresentação. Foi em 20 de fevereiro de 1982, no salão da capela de Paredin, onde Maneco nasceu, no interior de Nova Pádua. O público imediatamente identificou-se.
– Foi sem cenário, em cima das mesas mesmo. Fizemos sucesso e nos entusiasmamos a continuar – completa Tonus.
Dessa forma espontânea e amadora, a Associação Cultural Miseri Coloni deu os primeiros passos. Uma trajetória que, ao final de 2011, chega aos 30 anos contabilizando dezenas de montagens, reconhecimento além dos limites da Serra, apresentações na Itália, milhares de espectadores e uma biografia pronta para sair do prelo.
– A maioria de nós se criou no meio rural. Com o Miseri, a gente queria desmitificar a ideia de que era feio ser colono – aponta Hugo Lorensatti, 63, outro dos integrantes mais antigos da associação.
Tanto que em 1984 alguns dos atores do grupo passaram a cultuar o dialeto vêneto também no rádio. Era a estreia do programa Cancioníssima, transmitido até hoje nas manhãs de domingo (entre 10h e 12h) pela rádio São Francisco.
– O grupo foi um marco para que as pessoas deixassem de ter vergonha de suas origens – opina Maneco.
O primeiro espetáculo do grupo foi batizado de Quatro, Cinque Storie dei Nostri Imigranti, com apresentações que abrangeram o período de 1982 a 1986. Mas foi a segunda produção do Miseri Coloni a responsável por levar o grupo a outros patamares, tanto de popularidade quanto de produção. Nanetto Pipetta, personagem criado pelo frei capuchinho Aquiles Bernardi em narrativas veiculadas pelo jornal Correio Riograndense, foi imortalizado nos palcos pelo ator Pedro Parenti na peça homônima. Foi à época desse espetáculo que o grupo ganhou a presença do diretor José Itaqui – os integrantes do Miseri concordam que o trabalho tomou um rumo bem mais profissional a partir daí, mas sem deixar a originalidade se perder.
Nanetto Pipetta ficou 10 anos em cartaz, foi assistido por mais de 70 mil espectadores e se tornou símbolo do Miseri Coloni. O gringo turrão foi até retratado em forma de estátua nos pavilhões da Festa da Uva (inaugurada em 2006), mas vive mesmo é na memória dos que em algum momento assistiram ao Nanetto de Pedro Parenti em ação. Cômico, irônico e crítico, o personagem até hoje representa boa parte da população da região:
– As pausas que ele fazia enquanto falava, o balançar do sapatão, tudo isso envolvia as pessoas. O Nanetto é o arquétipo da imigração italiana – opina José Itaqui, 55, diretor teatral que trabalhou 18 anos com o grupo e hoje vive em Santa Maria.
– Pedro era uma pessoa extraordinária, sempre fomos companheiros de todas as jornadas, das questões políticas às comportamentais, tínhamos uma afinidade fantástica. Seu trabalho marcou para todos nós – complementa Maneco.
– Essa palavra que ele falou, eu não escutava desde o tempo da minha avó. Essa palavra era da minha avó – comentou uma senhora com outra que estava ao lado, na plateia de um teatro na Itália.
A tal palavra a que ela se referia foi dita por algum personagem do Miseri Coloni, em uma das viagens do grupo ao país.
Quem lembra do fato é o diretor José Itaqui. Ele conta que a espectadora ficou tão entusiasmada que não conseguia mais parar de falar durante o espetáculo, causando até mesmo algum desconforto ao resto da plateia. Mas a emoção que arrebatou a italiana aflora em praticamente todas as apresentações do Miseri, aonde quer que ela ocorra.
– As pessoas se redescobrem a partir dos personagens em cena. Era impossível ter uma relação crítica distanciada – diz Itaqui.
Para ele, a iniciativa de levar o dialeto para os espaços públicos é o principal mérito do Miseri Coloni.
– Num período pós-ditadura, o grupo divulga a palavra dialetal, que se mantinha presa dentro das cozinhas do interior, e assim preserva o patrimônio. A palavra de raiz, de base, tem um conjunto de sentidos e afetos que só ela consegue comunicar – acrescenta.
Proporcionar essa identificação com o público é um dos motivos de maior orgulho para os integrantes do Miseri.
– O grupo acaba sendo um elo entre o público e sua história. Trabalhamos com a memória e, normalmente, o passado tem um sabor doce – comenta Luciano André Benincá, 41, outro integrante da trupe.
Os diálogos em dialeto dão outro sentido para o teatro. E para quem atua ou ajuda na produção não é diferente. A cada espetáculo, os integrantes do Miseri buscavam na memória as palavras, os trejeitos e os costumes de seus antepassados, sem esquecer das roupas e acessórios garimpados em família.
– Vi muita gente chorando na plateia ao lembrar das histórias que seus nonos contavam – complementa Lorensatti.
Nem só de gargalhadas foram compostos os espetáculos do Miseri Coloni. O grupo nasceu durante um período de engajamento dos integrantes em causas bastante pertinentes. Atual presidente da Associação Cultural Miseri Coloni, Clerí Ana Pelizza, 50, considera que o personagem mais famoso do grupo, Nanetto Pipetta, era um panfletário. Entre os assuntos abordados nas peças, estavam questões sócio-políticas que envolviam, principalmente, a população rural.
– Falávamos de reforma agrária – lembra Nadir Tonus.
A necessidade de organização social, o papel dos sindicatos, a luta pela terra e a dificuldade de acesso ao crédito agrícola eram alguns dos temas trazidos à tona em cena.
– Incentivávamos os produtores rurais a se sindicalizar – revela o ator Auri Pasqual Paraboni, 58.
Algumas vezes, a inclinação política de esquerda era criticada pelos espectadores.
– Alguns diziam que o espetáculo estava bom até determinado ponto, exatamente quando tocávamos em algum assunto desses – relata Lorensatti.
Além de politizados, os integrantes do Miseri Coloni foram corajosos em levantar a bandeira do dialeto nos mais diferentes palcos. Paraboni relembra que o grupo sempre procurou ir até aonde o povo estava. Por inúmeras vezes, levaram arte a cidades que nem conheciam teatro. E não era qualquer produção: chegavam “armados” com 40 ou 50 mil watts de luz, palco de 20 por 10 metros, 36 atores, sem falar na parafernália de cenário e figurino.
– Sempre foi uma característica nossa levar as apresentações para localidades do interior. Existem lugares onde as pessoas não têm a oportunidade de ver teatro, então vão em massa quando tem – avalia Clerí.
– Organizávamos rifas, nossas esposas faziam tortas, tudo para arrecadar dinheiro para pagar a gasolina da Kombi que nos levava.
Mas as apresentações do Miseri nunca ficaram presas a um ambiente ou outro. Os gringos invadiram também os espaços urbanos, onde até quem não sabia falar dialeto acabava entendendo a mensagem por causa da empatia com os personagens.
– Acho que fomos desbravadores. Por onde passamos também incentivamos pessoas a criarem seus próprios grupos de teatro – sintetiza Lorensatti.
Reunidos na sede da Associação Cultural Miseri Coloni, em Caxias, parte do grupo de atores relembrou inúmeras histórias engraçadas ao longo das últimas três décadas. Entre um chimarrão e outro, as memórias vão aflorando. Embora hoje o Miseri conte com 22 integrantes, não foi possível reunir todos para o bate-papo com o Pioneiro. Mesmo assim, causos não faltaram.
Um das primeiras histórias é lembrada por Hugo Lorensatti. Ele conta que, em determinado espetáculo, o personagem que ele interpretava saía do meio da plateia, falando que conhecia toda aquela história.
– Tive algumas situações constrangedoras com esse personagem. Uma vez me levaram para fora, achando que eu estava me intrometendo na peça – recorda.
A presidente do Miseri já começa a rir ao lembrar do sufoco que passou justo na estreia do espetáculo La Vita Zè Una Vaca. Tudo por causa de uma colher de pau, a mescola em dialeto. O utensílio doméstico deveria ser usado para mexer uma polenta. Em cena, Clerí não encontrou a colher de jeito nenhum e teve que improvisar um texto enquanto procurava.
– Saí do palco procurando e não tinha jeito de encontrar. Passei a mão em uma vassoura que estava por lá e a quebrei na perna mesmo. Meti no joelho. Aí fiz o pau da polenta e pude voltar para a cena. O mais legal foi que ninguém percebeu que aquilo não fazia parte do texto – diverte-se.
– Certa vez íamos até uma cidade próxima a Lajeado apresentar o espetáculo Quatrilio. Tinha uma pessoa conosco que disse que conhecia tudo por lá, foi o nosso guia. Só que fomos parar em Anta Gorda. Viajamos do meio-dia às 19h para chegar – comenta Paraboni.
Fora de Caxias, geralmente os contratos de apresentações do Miseri previam o pagamento de alguma refeição à equipe. Mas nem sempre esses momentos eram tão agradáveis.
– Fomos jantar, e o arroz com galinha que estavam oferecendo tinha queimado. Tentaram corrigir e ficou ainda pior. Lembro de todo mundo fazendo ânsia – gargalha Lorensatti,
Nadir Tonus recorda de outro ainda mais surreal.
– Teve um restaurante em que as aranhas se balançavam nas teias, havia muita mosca e, no banheiro, tinha que entrar de ré, para não ver a sujeira. O churrasqueiro, então, tinha sangue até na ponta da orelha. Alguns não quiseram comer, mas a carne estava boa – lembra.
Encontrar pessoas que mantêm fluente o dialeto vêneto no cotidiano tem sido uma tarefa cada vez mais difícil. Essa é uma constatação de todos os integrantes.
– Estamos tentando manter, mas sabemos que vai ter fim – lamenta Clerí.
Para a professora da UCS e pesquisadora em Linguística e Cultura Regional Vitalina Maria Frosi, a língua dialetal vem se perdendo há décadas, essa não é uma constatação recente.
– O dialeto sempre foi um sistema que serviu para a comunicação nas comunidades rurais. Ele deveria ter sido cultivado nas famílias, mas na década de 1930 (época da Segunda Guerra Mundial) as pessoas foram proibidas de falar o dialeto.
Conforme a pesquisadora, a partir da década de 1970 o dialeto começou realmente a se extinguir e passou também a ser estigmatizado. Ela lembra ainda que as comemorações do centenário da imigração italiana até despertaram um sentimento de italianidade, mas não o suficiente para reverter a tendência.
– O retorno às origens não tem força suficiente para recuperar o que foi perdido. No campo da arte, parece que há esta tentativa maior de se preservar. Mas perdeu-se um patrimônio, não adianta forçar a fala dialetal num centro urbano, até porque em Caxias hoje somente 30 % da população descende de italianos – avalia a professora.
O jornalista Tales Armiliato desenvolveu sua dissertação de mestrado justamente abordando a preservação da identidade linguística regional, denominada de talian (o que seria uma língua brasileira com características do norte da Itália). Ele analisou a boa audiência do programa apresentado em dialeto pelos integrantes do Miseri, há mais de 25 anos, na rádio São Francisco.
– Esses ouvintes relembram de um tempo que não volta mais. As histórias abordadas falam do meio rural, onde a maioria dos ouvintes já não está mais – comenta o jornalista.
Armiliato concluiu que o programa ativa a memória dos ouvintes e estimula a aplicação da língua em família. Poderia se dizer que o mesmo papel é executado pelo teatro do Miseri. Apesar de não conseguir reverter o que já foi perdido, a permanência do grupo como incentivador do dialeto é positiva. E, se depender de Maneco, o Miseri nunca deixará de fazer teatro em talian:
– Acho que se enveredarmos para outra linha de teatro, o grupo acaba. Não podemos abandonar o dialeto, ele sempre regeu o grupo.